Literacia tecnológica: Uma necessidade ou uma obrigação? Henrique Santos Educador de infância A Literacia emergente As civilizações desenvolvem-se com a escrita, e é a passagem da comunicação oral para a palavra escrita que desenvolve uma civilização. Ao longo da história da humanidade, muitos são os exemplos de desenvolvimento civilizacional baseados nas aquisições literácitas das populações, e, consequentemente, das sociedades. A linguagem é uma ferramenta essencial ao pensamento. Sem a capacidade de representar simbolicamente o que vemos e não vemos, os nossos pensamentos não iriam alem do que é palpável: literatura, arte, filosofia, ciência e história seriam impossíveis. A linguagem facilita a relação com o mundo e com os outros. Usando esta capacidade podemos comunicar, ordenar, controlar, perguntar, criar. A linguagem desenvolve-se em contexto de relação social: precisamos viver com os outros para desenvolver a linguagem. As crianças desenvolvem a sua linguagem ouvindo, observando, falando, provocando os adultos. Aprender a ler, e a escrever, de forma integrada, é fundamental para, em sociedade, aprender a aprender. Mas é fundamental que esta leitura também permita aprender a saber. Quase todo o nosso vocabulário cognitivo e teorético consiste em palavras abstractas que não têm qualquer equivalente precioso em coisas visíveis, e cujo significado não é reconduzível nem traduzível em imagens. A primeira etapa da aprendizagem da leitura inclui a tomada de consciência da linguagem escrita. Antes de se tornarem leitores, as crianças devem tomar consciência porque é que as pessoas lêem e o que fazem durante esse processo. Contudo, palavra só deixa compreender se for compreendida, isto é, se conhecermos a língua e o contexto a que pertence; de outro modo, é letra morta, um signo ou um som qualquer. Como já referido, a construção de um conhecimento literácito inicia-se bem cedo, na infância. O desenvolvimento da literacia emergente depende mais das práticas desenvolvidas em diversos contextos do que do nível de inteligência, classe social, rendimento económico ou (dentro de determinados limites) da formação dos progenitores. Porque será, então, importante desenvolver esta competência? A literacia, enquanto uma forma de "arrumar" o conhecimento linguístico, permite extrair informação do impresso, converter linguagem sob a forma impressa em situações de interacção social. A literacia - e não a escolarização - determinam a estruturação neuronal e a forma como o cérebro humano processa o sinal linguístico. Ninguém é o mesmo depois de alfabetizado. Nas sociedades modernas, o impresso é uma realidade incontornável: não é possível viver, interagir a diverso níveis sociais sem o domínio básico das ferramentas literácitas: compreender e produzir linguagem nas vertentes orais e impressas. Mas também, e cada vez mais, as mensagens (e imagens) que utilizam os múltiplos meios (multimédia, televisão, etc.) são cada vez mais globais e presentes no desenvolvimento social e humano das pessoas. No entanto, a imagem é pura e simples representação visual. A imagem não se vê em chinês, árabe ou inglês. Simplesmente vê-se. Se olharmos para trás, e bastam apenas uns poucos anos, conseguimos identificar o facto de que, até há poucos anos, o mundo e os acontecimentos eram-nos relatados (por escrito) hoje são-nos mostrados, e o relato (a sua explicação) é quase apenas em função das imagens. O computador e a televisão, ao produzir imagens e apagar conceitos, podem atrofiar a nossa capacidade de abstracção e, com ela, a nossa capacidade de compreender. Aprender na Sociedade de Informação A educação articula-se com a sociedade de informação, uma vez que se baseia na aquisição, actualização e utilização dos conhecimentos. Neste modelo multiplicam-se as possibilidades de acesso a dados e a factos. Assim, podemos dizer também que a educação deve facultar a todos a possibilidade de terem ao seu dispor, recolherem, seleccionarem, ordenarem, gerirem e utilizarem essa mesma informação. O desafio, para uma audiência qualificada que estará no cerne desta revolução - o mundo da educação -, passa por, percebendo a dinâmica da Sociedade de Informação, contribuir para traçar objectivos, estabelecer modelos e estimular participações, ou seja, ser pró-activo, em vez de aguardar o rumo dos acontecimentos. Actualmente, assiste-se a um desenvolvimento significativo da informação disponível para os cidadãos. O aluno chega à escola transportando consigo a imagem de um mundo - real ou fictício - que ultrapassa em muito os limites da família e da sua comunidade. As mensagens mais variadas - lúdicas, informativas ou publicitárias - que são transmitidas pelos meios de comunicação social entram em concorrência ou contradição com o que as crianças aprendem na escola. O tempo despendido diante da televisão não lhes exige nenhum esforço, pois a oferta instantânea da informação proporcionada pelos média é-lhes mais fácil e gratificante do que o esforço exigido para alcançarem sucesso no ensino formal. A este propósito, Geovanni Sartori avisa-nos que: "a verdade maior, e global, é que a criança cuja primeira escola (a escola divertida, que precede a escola aborrecida) é a televisão, é um animal simbólico que recebe o seu inprint, o seu cunho formativo através das imagens de um mundo todo ele centrado no ver (...) O problema é que a criança é uma esponja que regista e absorve indiscriminadamente (visto ainda não ter a capacidade de discriminação) tudo aquilo que vê" (2000, p. 29). As tecnologias de informação e comunicação oferecem potencialidades imprescindíveis à educação e formação, permitindo um enriquecimento contínuo dos saberes, o que leva a que o sistema educativo e a formação ao longo da vida tenham de ser reequacionados à luz do desenvolvimento destas tecnologias. Como uma espécie de "glossário" para a aprendizagem na sociedade da informação, devemos entender que a formação ao longo da vida sustenta-se em torno de quatro aprendizagens fundamentais, que se interligam e que constituem os pilares dos conhecimentos, ou seja: - aprender a conhecer, isto é, adquirir os instrumentos da compreensão, combinando uma cultura geral, suficientemente vasta, com a possibilidade de trabalhar em profundidade um pequeno número de matérias, o que também significa, aprender a aprender, para beneficiar das oportunidades oferecidas pela educação ao longo da vida; - aprender a fazer, para poder agir sobre o meio envolvente, a fim de adquirir não somente uma qualificação profissional mas também competências que tornem a pessoa apta a enfrentar as mais diversas situações e a trabalhar em equipa; - aprender a viver em comum, a fim de participar e cooperar com os outros, no respeito pelos valores duo pluralismo, da compreensão mútua e da paz; e, finalmente, - aprender a ser, via essencial que integra as três precedentes e que permite a cada um desenvolver melhor a sua personalidade, ganhar capacidade de autonomia, discernimento e responsabilidade. Em qualquer dos modelos, o conhecimento só existe se for realizado pela pessoa, que por sua vez deve ser intelectual e materialmente activa à escala dos seus meios, logo, a utilização das novas tecnologias deve poder realizar-se através do tempo e dos meios adequados. Daí, e se não considerarmos desde já desnecessário fazê-lo, é importante que possamos reflectir, paralelamente a muitas outras, sobre algumas questões fundamentais. (1) Como desenvolver nos futuros (e actuais) profissionais atitudes positivas, numa perspectiva de abertura à mudança, receptividade e aceitação das potencialidades das TIC, capacidade de adaptação ao novo papel do educador como mediador e orientador do conhecimento face aos alunos estimulando o trabalho em grupo?; (2) Como promover valores fundamentais no uso das TIC, incluindo a atenção às questões de segurança/vigilância sobre a informação na Internet, as questões de direitos de autor e éticas relativas à utilização das TIC?; (3) Como desenvolver competências de ensino genéricas sobre quando utilizar e como integrar as TIC nas diferentes fases do processo de ensino, partindo do planeamento até à avaliação e modo de usar as TIC para estimular as dinâmicas da escola?; (4) Como desenvolver competências para o ensino da área curricular (incluindo o modo como integrar as TIC no curriculum), conhecer e avaliar software educacional, explorar os recursos existentes na escola, estar familiarizado com o equipamento e a questões relativas às condições de acessibilidade para públicos com necessidades especiais?; (5) Como desenvolver capacidades de manuseamento das ferramentas, incluindo software utilitário e de gestão pedagógica, em contexto educativo?. O Papel do Educador A importância do papel do Educador como agente de mudança nunca foi tão evidente como agora. Os educadores têm um papel preponderante na formação da personalidade, na formação de atitudes, positivas e negativas face ao processo de ensino-aprendizagem. Devem despertar a curiosidade, desenvolver a autonomia, estimular o rigor intelectual e criar condições necessárias para o sucesso da formação, seja a educação formal, seja a permanente. Com o desenvolvimento de todas as novas formas de comunicação, o conhecimento escolar deixou de se processar predominantemente através do educador na sala de aula. O desenvolvimento das novas tecnologias não diminui em nada o papel dos educadores, antes o modifica profundamente: o educador deixa de ser o transmissor do saber, tornando-se num elemento do conjunto, organizando o saber colectivo. Tendo em conta esta quantidade enorme de informação disponível través do computador (Internet) ou através da televisão e do rádio, ou mesmo do jornal, ser capaz de se orientar nesta teia imensa obriga a criar novas "alfabetizações", novas formas de compreender o real, e, consequentemente, adquirir hábitos sociais que levem à autonomia de indivíduos livres e esclarecidos. As novas tecnologias colocam os educadores perante a "obrigatoriedade" de adquirir competências e conhecimentos que também o tornem avaliador das capacidades técnicas das "tecnologias". O educador deve saber, não só utilizar os instrumentos, mas, acima de tudo, deve saber quando e como os utilizar, e para isso deve ser "educado". No processo de integração das novas tecnologias na escola, existem, de acordo com Postman (1994, citado por Litti, F., 1994) "certas etapas, nomeadamente: 1) uma Zona de Conforto (período durante o qual se adquire o equipamento); depois um estágio de 2) Uso Desconexo (quando o computador fica num canto, como uma coisa extra, a ser usada quando as outras tarefas académicas tiverem sido terminadas) e, consequentemente, há 3) um Uso Coordenado (em que se tomam decisões em relação ao usar o computador) e, finalmente, 4) Uso Transparente (quando não é mais um caso de uso de tecnologia só pelo valor tecnológico em si, mas como suporte para uma estratégia pedagógica). Através desta divisão "temporal" do ritmo de integração do computador na Escola, podemos, de certa forma, considerar quais os momentos em que o educador se deve esforçar por motivar e favorecer a utilização de uma nova técnica, ou "instrumento" de trabalho: a 3ª e a 4ª fase são aquelas em que o Educador pode, e deve, orientar a definição de estratégias e actividades para uma utilização efectiva do computador. Esta estratégia deve surgir como a resposta às perguntas que a escola deve fazer: O que queremos que os nossos alunos aprendam a fazer? Antes de responder cabalmente a esta questão, a escola, e consequentemente os educadores, devem reflectir sobre o modelo de formação que pretendem, e que, para contrariar a tendência geral e crescente das sociedades que sacrificaram os valores culturais e sociais à tecnologia, que dá ênfase à eficiência em detrimento da reflexão moral ou da ética de funcionamento. Tendo em atenção um novo paradigma de educação que tem vindo a crescer, o educador deve adequar-se a um novo estatuto, onde será sempre mais importante a capacidade do aluno pensar e expressar claramente as suas ideias, solucionar problemas e tomar decisões em vez da memorização de factos ou da repetição de respostas certas. O educador deve ser, acima de tudo, um guia, aumentando a participação activa da criança através de abordagens mais individualizadas e mais cuidadas, de forma a que a motivação do aluno seja um fenómeno intrínseco e não algo que vem de fora, do educador, dos pais ou dos amigos. Claro que o educador, antes de utilizar o computador, deve fazer um levantamento profundo das problemáticas nas quais esse instrumento de trabalho pode dar uma contribuição importante. O Computador deve entrar no fim de um processo de análise crítica dos problemas pedagógicos em vez de ser uma solução a priori sem que haja um levantamento do problema. Desta forma, o computador surge como mais um instrumento de ensino e aproveitado por ele. O computador torna-se assim também um instrumento independente, na medida em que serve várias matérias sem pertencer a um único campo científico. Não produz obrigatoriedade e dependência exclusiva. Os instrumentos que atraem o ensino são instrumentos de comunicação, e a relação de ensino-aprendizagem é uma relação de comunicação. No entanto, por ser um instrumento de comunicação por excelência, o computador provoca problemas no campo da pedagogia: sendo a pedagogia a "ciência" de transmitir conhecimentos tendo em conta uma teoria e uma filosofia, o uso do computador, ou, num âmbito geral, o uso de qualquer instrumento, pode influenciar este sistema, pois a utilização de instrumentos modifica a relação aluno-conhecimento, a relação aluno-educador e a relação escola-sociedade. Por todas estas razões anteriormente apontadas, o educador que utilize as novas tecnologias, nomeadamente o computador, na sala de aula deve adequar a sua atitude aos novos requisitos pedagógicos, ou seja, o educador consciente da sua nova responsabilidade deve funcionar como um elemento promotor do desenvolvimento pessoal do aluno, tornando-o uma pessoa crítica e activa perante a sociedade, fomentando o desenvolvimento de uma consciência de cidadania, nomeadamente, através da compreensão literácita. Esta missão do educador só é possível se o próprio educador admitir a sua necessidade de formação pessoal. Tal como cada aluno que se sente motivado a aprender a utilizar novos instrumentos, a experimentar novos "cantinhos" também o educador deve sentir-se atraído por novos desafios, e, acima de tudo, deve sentir-se seguro na sua "insegurança" da novidade. Formação literácita com recurso às tecnologias O educador pode ser, ou antes, é o modelo de conquista, de apoio, de experimentação que as crianças e os jovens alunos têm no seu dia a dia: o educador tem a capacidade de levar os alunos a sentirem-se motivados e despertos para novos desafios, e aprenderem muito com isso. Daí, a necessidade do educador ocasionar novas e diferentes actividades de aprendizagem que motivem o aluno e, sobretudo, que integrem conhecimentos extracurriculares, muitas vezes mais interessantes para os alunos e mesmo para as famílias. O educador tem, como objectivo principal, neste novo paradigma de educação, a tarefa mais importante: ser o condutor, mais do que ser o dono da razão, é ele que deve motivar e favorecer a descoberta de novos modelos, de outras informações e de outros métodos, sem nunca esquecer o desenvolvimento do espírito crítico e analítico que deve florescer no aluno. Como conclusão, ao definirmos que o termo 'sociedade da informação' é uma das diversas designações para a sociedade em que vivemos - sociedade pós-moderna, pós-industrial, global, etc. - com as suas especificidades culturais, económicas, políticas e ideológicas que sugerem coisas muito diversas como: tecnologias de informação, facilidade de comunicação, globalização, interdependência, etc. A sua forte conotação com as NTI reforça, por um lado, a ideia do homem como criador e utilizador dessas tecnologias mas, por outro lado, atenua a ideia do homem que pensa os efeitos do que criou: a complexidade da sociedade em que vive, em mudança acelerada e marcada pela imprevisibilidade em que cresce a possibilidade da separação entre o conhecimento e o pensamento. Como refere Carlos Tedesco (1999): "Os media não foram concebidos como entidades da formação moral e cultural das pessoas... A sua concepção e evolução supõem que essa formação já é um dado adquirido e a tendência actual dos meios de comunicação consiste em deixar aos próprios cidadãos a responsabilidade de eleger as mensagens que querem receber." Esta natural ausência de dimensões morais e culturais, constitui um aspecto de crucial importância a ter em conta no modo como as tecnologias devem ser encaradas e integradas no processo de socialização literácita das crianças e dos jovens e na preparação dos professores. Mais do que ensinar o manuseamento técnico dos computadores, cabe à escola e aos professores garantir que as abordagens das tecnologias sejam realizadas de acordo com pressupostos morais, sociais e culturais e como vias de formação cívica. A falta destas referências pode gerar novas exclusões e agravar as existentes. Por isso, a educação para as escolhas deverá ser uma incidência intencional da acção das escolas e dos professores no contexto da sociedade da informação. Esta tarefa exige que os professores, ainda antes de terem os conhecimentos técnicos para lidar com as NTIs, tenham os conhecimentos, as atitudes e as perspectivas ideológicas necessários para lerem a sociedade a que agora chamamos da informação. Trata-se de uma certa sabedoria integradora de conhecimentos acerca da sociedade em que vivemos e de um conjunto de atitudes assentes na experiência e na adesão a valores fundamentais que permitam, em cada momento, assumir atitudes humanamente significativas. Em resumo, o domínio técnico das tecnologias só por si, não é condição para a integração e participação cívica na sociedade em que vivemos. A sociedade da informação e as tecnologias que a suportam encerram promessas de maior igualdade de oportunidades, mas também a possibilidade de novas exclusões. É ao educador/profissional de educação que compete mediar as escolhas, e dessa forma mobilizar para um desenvolvimento da literacia emergente que dependa mais "das práticas desenvolvidas em diversos contextos do que do nível de inteligência, classe social, rendimento económico ou (dentro de determinados limites) da formação dos progenitores". Morelia 2006 Henrique Santos Referências bibliográficas ABRANTES, J. C. (1998) - Educação para os Media, Cadernos de Educação de Infância, 44, p 28-29, Lisboa BIDARRA DE ALMEIDA, J. (1998) Aprender na Era Digital, Cadernos de Educação de Infância, 44, p 23-25, Lisboa. BERTRAND, Y. (1991) - Teorias Contemporâneas da Educação, Col. Horizontes Pedagógicos, Publicações Instituto Piaget, Lisboa BESSE J.-M. e FERRERO, M. (1986) - A Criança e os seus complexos, Verbo, Lisboa BREDEKAMP, S., KNUTH, R. A., KUNESH L. G. e SHULMAN, D. D. (1992) - What Does Research Say About Early Childhood Education?, NECREL, Oak Brook. COOPER, B. (org.) 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