Construção e utilização de brinquedos tradicionais no Centro Infantil (3-6)
Introdução
Realizou-se uma Investigação Etnográfica, em Centro Infantil - Jardim-de-Infância
de Guimarães (Portugal), com 22 crianças (3 a 6 anos), observando-se
as suas atitudes/comportamentos e preferências, durante a construção
e utilização de brinquedos tradicionais (construídos) e actuais (fornecidos).
Efectuou-se o registo directo e sistemático da utilização dos brinquedos
e a videogravação simultânea de jogos não orientados, no 1º e 5º dias,
por 30 minutos, com os dois grupos de brinquedos, separadamente.
Foram eleitos os carros de rolamentos, os cavalos de pau e os skates,
havendo ferramentas tradicionais abandonadas, desconhecidas (bufos,
elásticos para saltar...).
Na construção de brinquedos, é de salientar a ajuda de familiares
e educadores ao pensamento criativo e o brincar em conjunto por crianças.
Discutir-se-ão funções dos brinquedos, configuradas por gerações
passadas, em ausência de consumo desenfreado ou espírito de coleccionador:
enriquecimento da vida, oportunidade de aprender e de lazer, criação
de «irrealidades» e decisão sobre o que fazer com aquilo...
A essência do brinquedo pode ser colocada na própria imaginação do
seu criador e utilizador. Constatou-se que, quando se brinque, nem
se sentem limites pessoais nem limitações físicas, esquecida a auto-observação
e fruindo-se o momento que passa.
Na localidade rural, a criança reina em liberdade, nos grupos
informais. A escola tem que lhe dar o melhor – uma disposição
comportamental (Barnett, 1990), para experiências activas, com imaginação,
confiança e criatividade (e.g., Csikszentmihalyi, 1996, 1997; Gardner,
1994), exigido divertimento e bem-estar (Serra, 1997), com meios atraentes
para jogos livres e organizados.
Observaram-se as atitudes/comportamentos e preferências por brinquedos
nessas crianças, na instituição, durante a construção manual dos mesmos,
com ajuda de Educadora de Infância e familiares. Depois, os brinquedos
foram explorados livremente no recreio, durante dois momentos, de
acordo com a divisão estabelecida: brinquedos «tradicionais» (alguns
desconhecidos, artesanais, comprados ou recriados com madeira, lata,
trapo, meia, caixa de fósforos, papel e arame) e actuais (alguns desconhecidos
e/ou equivalentes aos anteriores, adquiridos em plástico e em materiais
industriais).
As brincadeiras e os jogos de crianças reflectem aspectos sócio-culturais,
locais e heterogéneos, para além de diferenças sócio-económicas (Aycock,
1998, p. 50). Em condições adversas, a dicotomia brincar/trabalhar
é reforçada (Holmes, 1999). Globalmente, com o Projecto, ampliou-se
a nossa concepção ambígua de brincar (Sutton-Smith, 1998; Manson,
2002), evitada a agressividade e a irrequietude (Pereira, 2002), com
a exploração de múltiplos recursos e dos seus significados em contexto
(Pereira e Neto, 1994).
1. Metodologia
Em uma Investigação Etnográfica, implicada a intervenção (Lewis,
1946; Corey, 1953, Schwandt, 1997) na escola, uniram-se pesquisa histórica
e acção. Desenvolveu-se a formação, a colaboração e a observação participante
de Educadores e pais no Projecto. Observaram-se 22 crianças, durante
«jogo livre», em Maio de 2003, no Jardim-de-Infância público. As suas
idades dividiram-se em três grupos etários: (1) 3 e 4 anos, n
= 7; (2) 5 anos, n =12; e (3) 6 anos n = 3.
Os seus contextos de vida são a escola e a casa de família. Após
o final das actividades escolares (15:00 horas), as crianças continuam
a brincar nas imediações ou ajudam os pais em trabalhos agrícolas
e na alimentação de animais. Por vezes, dormem ou vêem televisão.
Os seus jogos efectuam-se com meios reais e simbólicos (folhas, pedras,
paus, vassouras, tachos...). Fazem cartuchos de papel, que enchem
com pedras (castanhas), para venderem em banca de dois caixotes,
apanham minhocas, escavando o recreio e amontoam pedrinhas...
Um instrumento de trabalho foi uma grelha de registo com entrada
dupla, para anotar, na parte superior, os nomes dos brinquedos e,
na parte lateral esquerda, os nomes das crianças. Para cada brinquedo,
foram estabelecidos 6 espaços, cada um correspondente a 5 minutos,
para um total de 30 minutos de observação. Duas pessoas registaram
os brinquedos utilizados no recreio por cada criança, de 5 em 5 minutos.
Considerou-se a frequência máxima de utilização de um brinquedo, estipulada
de 6 vezes, pelo que no fim de 5 dias poder-se-ia obter uma utilização
de 30 vezes, em que um brinquedo não sairia das mãos de uma criança.
Complementou-se esse registo com videogravação, no 1º e 5º dia, durante
uma semana, por 30 minutos diários. Foram ainda realizadas entrevistas
não directivas, gravadas e transcritas as descrições dos brinquedos
pelas crianças, durante e depois da sua construção. Elas desenharam
os brinquedos preferidos.
Teve-se em atenção a região norte de Portugal e a idade das crianças
na escolha de brinquedos, em duas fases organizada, entre Janeiro
e Março de 2003.
A primeira acção/interacção envolveu a construção de brinquedos,
paralela à sua compra. Em Março de 2003, durante duas semanas, ocorreu
o segundo modo de trabalho empírico, estruturado ao longo de duas
semanas sucessivas: (1) utilização de brinquedos tradicionais; e (2)
exploração no recreio de brinquedos actuais.
No que se refere à selecção, os brinquedos tradicionais construídos
exigiram o apoio de comunidade escolar e famílias envolvidas. Os brinquedos
adquiridos foram escolhidos, preferencialmente, equivalentes aos tradicionalmente
fabricados. A escolha definitiva de brinquedos, para a categoria «brinquedo
tradicional», anotada a quantidade, compreendeu a seguinte organização:
andas, andolas ou sapatas em baldes de lata,
ligados por cordas - ressaltos ou estribos em que se apoiam os pés
(3 pares); arcos/aros, conduzidos por arames, terminados em ganchos
em uma extremidade – ganchos ou ganchetas (3); cavalos de pau
(6); moinhos de vento, corrupios ou ventoinhas (6); bolas de trapo,
pelotas ou pelas (6); cordas grossas e compridas (3);
bufos, bufa-gatos ou nique-niques (para manusear)(3); assobios de barro - pífaros, cucos, ocarinas e galinhas (8);
botões (com 2 cm) e caricas (2 sacos); almofadas ou travesseirinhas
coloridas (para manusear) (5); elásticos (para saltar) (3); telefones
de cordel, com caixas de fósforos, substituídas por copos de iogurte
(3); arcos e flechas em madeira (3); sacos de serapilheira em sisal
(3); carrinhos de rolamentos (2); e bicicletas-com-homem (3). Na categoria
«brinquedo actual», integraram-se brinquedos, anotada a quantidade:
rodas de plástico (3 pares); andas de plástico (2 pares); skates
(3); arcos de plástico (4); dardos ou setas e alvos (2); balões (6);
bolas de plástico (6); cordas com pontas (3); berlindes, belindres
ou belindros em vidro colorido (1 saco); apitos, assobios e cornetas
de plástico (6); raquetes e bolas (3 pares); stiques de hóquei e bolas
(4); maças de madeira, com a forma de peras (4); ringues ou argolas
grossas de borracha (4); telemóveis de plástico (3); e conjuntos de
copo e tampa, para fazer bolas de sabão (2).
2. Análise de procedimentos e de actividades
As crianças apreciaram a actividade de confecção de cavalinhos de
pau, bolas de trapos, travesseirinhas, moinhos de vento, telefones
de fio, bufos e andas…
Registaram-se limitações psicomotoras, decorrentes da idade. Os brinquedos
mais difíceis de construir foram os carros de rolamentos e os arcos,
conduzidos por ganchos. Foi necessária a ajuda de adultos, na dobragem
e costura de meias, bolas de trapo e travesseirinhas. Anotou-se
a fragilidade de materiais, sendo substituídos.
No primeiro dia, da primeira semana, o grupo não esperava ver tantos
brinquedos juntos. Todos pegaram em um brinquedo, mas também um par
de meninas cavalgou no mesmo cavalos de pau. Outras subiram,
com facilidade, a bancada de assistência existente, com andas. Alguns
«mosqueteiros» tiveram os seus arcos e lançaram flechas a um
e a outro alvo escolhido mais distante, mas foram os carros de rolamentos
a atrair maiores atenções, servindo para andar quase sentado sobre
os calcanhares, em pé, sentado, deitado, arrastado, em condução mais
perigosa, por quem gostava de ver cair. As corridas em cavalos
de pau e o uso de bolas de trapo levaram a acções repetitivas, enquanto
os telefones ligados por cordel, os apitos de loiça e os sacos de
serapilheira foram logo abandonados. Em breve, um brinquedo era uma
posse valiosa e meninas andavam já com moinhos de vento e rolavam,
em simultâneo, bicicletas-com-homem. O desequilíbrio proporcionado
pelas andas conquistou-as. Os arcos de bicicleta foram utilizados
por outras meninas, que os giraram na cintura, mas um menino quis
antes fazê-lo girar, com o gancho. Somente um par de andas causou
conflito entre sexos opostos.
No quinto dia, da primeira semana, um grupo apressado de quatro
meninas apossou-se do carro de rolamentos, pondo-se três sentadas
e uma a puxá-lo. As brincadeiras adquiriram, de imediato, um carácter
organizado. «Cavaleiras» formaram filas e os interiores dos baldes
das andas foram usados como panelasdecozinhados
para as montadas, vindo os cavalos ordenadamente almoçar.
Os arcos e flechas eleitos pelos «mosqueteiros» nem eram pousados,
enquanto estes exploravam arcos a rodar, sem gancho. Em breve, umas
meninas podiam limpar caricas espalhadas no chão, com vassouras,
que eram os pelos dos pescoços/cachaços dos cavalos de pau, logo depois
transformadas nos próprios cavalos, em que as «amazonas» se
afastavam. Assobiar com os apitos de barro podia assinalar a sua passagem
«real», enquanto outras insistiam em fazer comida e alimentar
os bichos. Os interiores das andas substituíram as panelas, mas
também os seus exteriores serviram de tambores. Depois de rolarem
um arco com a gancheta, dois rapazes, frente a frente, fizeram rolar
dois arcos, ao mesmo tempo, perícia sucedida por um «exercício de
força», arrastando-se um ao outro, estando metidos dentro do arco.
Sinais de poder (por ter algo), de exibição e de prazer no transporte
de algo implicaram, que as bolas de trapo fossem mantidas debaixo
do braço, sem finalidade imediata. As corridas de bicicletas-com-homem
e os «torneios» de cavalos de pau constituíram atracções prolongadas.
No primeiro dia, da segunda semana, de uso de brinquedos actuais,
os skates atraíram imediatamente o grupo masculino. Por utilização
anterior, em pé no skate, com as pernas afastadas, um rapaz
equilibrou-se e, depois, para todos verem, fez as suas habilidades.
Inicialmente, todos desejaram possuir um ou mais brinquedos, ainda
sem os explorarem ou realizarem uma qualquer brincadeira. Uma menina
pequena deu pequenos saltos, com um telemóvel numa mão, um par de
andas em lata na outra mão e ainda conseguiu pegar no seu stique
de hóquei. Duas outras raparigas passearam, com duas rodas
de plástico giratórias com pegas. Com o conjunto de copo e tampa,
para fazer bolas de sabão, as bolas eram cada vez maiores em um grupo
que faziam bolas e outro grupo que as perseguia para as rebentar.
Uma menina decidida, pegou no alvo e em dardos, colocou o alvo
no solo, deu dois passos para atrás, pôs uma perna à frente da outra,
para logo lançar os seus dardos. Sorrindo, ao acertar no alvo,
teve logo que dividir as setas com um rapaz, continuando o jogo por
longo tempo, com mudança de parceiro e de local. Mais tarde, ela iria
interessar-se por fazer bolas de sabão e experimentar os botões do
telemóvel. A aventura de caminhar sobre andas só ocorreu na «equipa»
feminina. Os assobios, as cornetas, as bolas, os telemóveis e os ringues
de borracha passavam de mão em mão, sem exploração, por diferentes
motivos. Ao jogarem com as raquetes, dois rapazes mostraram dificuldade,
inerente à idade e ausência de prática: um dava um toque na bola,
enquanto o outro a ia buscar e repetia o gesto de a atirar ao ar,
sem a devolver. Uma rapariga chegou a atrever-se a ensinar
esse jogo, desistindo, ao não conseguir bater na bola com a raquete.
Outra menina envergonhada, por não saber andar sobre andas
ligadas por cordel, colocou-as ao pescoço, para logo assobiar com
um apito e caminhar lentamente no recreio, de stique na mão. Ainda
outra, foi a única a conseguir saltar à corda, feita girar com lentidão
pelas amigas. Olhados os berlindes coloridos com um valor superior
a botões, passaram a ser transportados no interior de andas. Houve
interesse no acto de perder-e-recuperar várias bolas: presas
na rede de baliza eram retiradas, abanada a rede, ou puxadas com um
stique. Foram feitos inúmeros remates com o pé, por dois rapazes,
que teimaram em derrubar quatro maças.
No quinto dia, da segunda semana, os skates foram escolhidos
apressadamente, pela maioria dos meninos, constatado o seu melhor
domínio: colocado o skate em um muro em declive, eles sentaram-se
nele, para descerem devagar. Elas entusiasmaram-se a fazer maiores
bolas de sabão do que inicialmente e a apanhá-las, já sem as rebentarem;
outras limitaram-se a transportar balões, travesseirinhas,
botões e berlindes. Uma menina dirigiu-se aos donos dos skates,
que desciam do muro e, como se estivesse a andar sem andas, sentou-se
e levantou-se com elas, sem se desequilibrar. Entretanto, um rapaz
fazia bolas de sabão, logo rebentadas por um grupo em gritaria. Guardar
e possuir brinquedos, sem função de uso, continuou a registar-se.
Sentados em dois skates, dois rapazes retiravam, um a um, berlindes
do interior de uma anda. Outro recuperou uma bola caída na rede de
uma baliza, com um stique de hóquei. Duas meninas imitaram-no e, como
a mais pequena ficou com o stique preso na rede, a mais velha auxiliou-a.
Pela primeira vez, um menino tentou andar com andas mas, sem sucesso
imediato, abandonou-as. Assobiar, com apitos e cornetas de plástico,
acompanhou outras brincadeiras. Uma das meninas mais novas nunca abandonou
o seu telemóvel. Mais tranquilo e constante na realização de
actividades, um grupo masculino desceu vezes sem conta um muro com
skate e outro grupo feminino fez bolas e mais bolas de sabão.
Jogar à bola foi outra acção masculina.
Discussão final
Ambicionou-se que o espaço exterior de Santa Leocádia de Briteiros
fosse um local aprazível de construção de ferramentas ou materiais.
Colocou-se em jogo a inteligência criativa e o pensamento produtivo
(ferramenta cognitiva) por crianças e por adultos.
Os carros de rolamentos, os cavalos de pau e os skates constituíram
os brinquedos preferidos, havendo outros recursos desconhecidos, nunca
usados, como os bufos para manusear e os elásticos para saltar.
As crianças interessaram-se por coisas grandes, perigosas,
inesperadas, novas e conflituais, com finalidade lúdica e funções
literais ou simbólicas. Desenvolveram competências cognitivas e psicomotoras,
brincaram de «faz-de-conta», incentivadas a partilha, a cooperação
e a entreajuda. Elas inventaram o que fazer de pequenos nadas. A maioria
das crianças, pela segunda vez na instituição, tem desenvolvimento
psicomotor adequado e limitado desenvolvimento da linguagem oral.
Globalmente, o grupo brinca, com vivacidade, rindo, saltando e correndo,
sem a nomeação de objectos e situações.
Enriqueceu-se a qualidade de vida quotidiana, sem uma pretensão meramente
revivalista ou de incentivo à sobrevivência acrítica do passado pré-industrial.
Em países ocidentais, os jogos tradicionais podem ter vindo a ser
mais «populares» em áreas urbanas do que rurais (Renson, 1998, p.
53), situação que exige a incorporação de valores éticos e identitários
regionais, na cultura dominante.
Referências
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Holmes, R. M. (1999). Kindergarten and college students’ views
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Sutton-Smith, B. (1998). The ambiguity of play. Cambridge,
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